segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

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Meus caros, este blog foi criado com o fim único de publicar o folhetim Malditos.
Agora, continue me acompanhando em trovadoreseletricos21.blogspot.com.
Até lá.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Malditos - Cap. XXIV

Sob o signo de plutão


Orlando arrumava seus trajes na mala, quando subitamente sentiu aquela estranha sensação de fuga, um canto de sereias distantes.

Eva: Orlando... Orlando... Orlando...

Muito distante.

Orlando: ... Perguntou alguma coisa?

Ela se aproximou.

Eva: Estava absorto...

Fechou a mala.

Orlando: Onde está a menina?

No quarto. Seus risos atravessam os cômodos junto com o vento na floresta lá fora. Sua ama, de joelhos, tenta ajeitar o vestido branco no corpo da sapeca: “Fique quieta! Assim não será um anjo”. A menina não agüenta, nem mesmo os beliscões a fazem parar de rir, até que, refletido no espelho...

Orlando: Já está pronta?
Governanta: Quase, senhor!

A velha severa para a criança. “Viu! Agora, se comporte.” Enquanto a vestia, tentava responder às inúmeras perguntas de sua pequena criada.
“Pra onde vamos?”
“Um lugar muito bonito, lá tem um jardim grande para brincar o dia inteiro”.
“E tem outras crianças?”
“Muitas!”
“E elas são anjos também?”
“Todas.”
“E demora muito pra chegar lá?”
Governanta: Se não me deixar terminar, demora.

Orlando fechava o bagageiro do carro, quando a menina e a governanta sentaram no banco de trás. Ao vê-las, Eva guardou o maço de cigarros, pensando: “Finalmente, vamos acabar logo com isso!”

Orlando entrou no carro, deu a partida. Setenta quilômetros até o local da cerimônia, uma estrada tortuosa até o sítio onde se realizaria a cerimônia. Ao entrar na avenida de acesso à saída da cidade, pensou em Diana.

Longe dali, Elias acordava de um sono sem sonhos. Olhou sem entender para o curativo na mão. Ana dormia ao seu lado. O raciocínio lento e confuso, resultado da combinação de álcool e morfina, aplicada pelo mordomo para operar a mão ferida. Procurou um relógio. Daqui a poucas horas. O tempo da hesitação já passou. Levantou da cama para tomar um banho. Ana o segurou pelo braço:

Ana: Descanse... Nada mais depende de você.

Enquanto isso, Orlando guiava com o pé leve no acelerador. A menina eufórica falando sem parar no banco de trás. Nem mesmo a governanta conseguia domá-la.

Eva: Por favor, cale a boca!

Nesse momento, o marido analisou a atitude da mulher. Sua mente mergulhou nos livros lidos durante sua iniciação, textos reveladores sobre a origem da Ordem.

Em 1909, na Inglaterra, sir. August C. Shelley, avô de Eva, entrou em desavença com o mago Aleister Crowley, líder da Ordem Estrela de Prata, a qual toda a família seguia. O motivo do rompimento foi classificado como uma “picuinha aristocrática”. Sir. Shelley acreditava que a crescente fama de Crowley, principalmente entre poetas mundanos, expunha a Estrela de Prata, situação inapropriada para uma ordem secreta. Desse modo, em 1911, a família Shelley mudou-se para o novo mundo, mais precisamente, para o Brasil. As más línguas disseram que fugiram com medo da ira de Crowley.

A família Shelley investia no ramo da nascente indústria metalúrgica e resolveu se expandir para os países americanos em processo de industrialização, com potencial para exploração de riquezas naturais. Não foi muito fácil convencer seus irmãos; para tanto, aliou à exposição precisa de dados geográficos, frases de efeito como: “O Brasil é o paraíso a ser explorado”.

Em seis anos em São Paulo, sir. Shelley assinou um contrato comercial com o governo federal, garantindo a exclusividade no fornecimento de ligas de aço para expansão da malha ferroviária. O êxito convenceu outra família dissidente da Ordem Estrela de Prata, os Soulthey, ligada aos Shelley por laços matrimoniais, a rumar para o país. O patriarca dos Soulthey era um mestre nos conhecimentos místicos. Segundo as más línguas, nutria profunda inveja de Crowley. Seja como for, nos primeiros anos residindo no Brasil, após explorar o mapa nacional, percebeu no sincretismo religioso um terreno fértil para plantar a semente de uma nova sociedade secreta: a Ordem. A partir daí, em pouco tempo, conquistou uma família portuguesa, cujos parentes haviam morrido na miséria em nome da Ordem de Cristo, os Oliveira Almeida, antepassados do Senador.

“Permita que me apresente: eu sou uma besta” – dizia o garoto de dezoito anos, o futuro Senador, sete dias após sua consagração. Aliás, essa euforia demorou uns dois anos para passar. Até aquele momento, nunca havia sentido tamanha força. E agora, aos sessenta anos, se ajeitando diante do espelho, sente aquela mesma euforia de garoto.

Muito se discutiu sobre manter a tradição da cerimônia, ou aboli-la já que viviam em um novo mundo... (E afinal de contas, o negócio era outro). Pesou a mão forte do sacerdote.

A origem do ritual remonta a 1666. A primeira cerimônia aconteceu como uma provocação ao Velho Testamento. Se Abraão sacrificou o filho em nome de Deus, os seguidores do Diabo também deveriam sacrificar os seus, e mais, todos beberiam o sangue de seus filhos. O sacrifício servia para honrar a devoção ao Bode. Mas o ser humano nunca está satisfeito em seu negócio com as divindades. O preço é sempre muito alto.

Ao migrarem para o novo mundo, os fundadores da Ordem manteriam a cerimônia de consagração, mas ninguém pretendia sacrificar um filho, ainda mais em terras novas como um imenso chão para expansão de suas riquezas. Discutiram sobre o sentido da morte do inocente. O ato demonstrava a ausência de amor, o preceito básico de Cristo. O amor estava simbolizado no cordeiro. Porém, isso não significava sacrificar os próprios cordeiros. Assim, refizeram o contrato com suas divindades. No novo continente, os devotos adotariam crianças para oferecê-las, de sete em sete anos, ao Bode. Para demonstrarem a ausência de afeto, as adotariam aos seis meses de idade, conviveriam com elas até os sete anos, quando as sacrificariam na missa negra.

O fator decisivo para permanência da cerimônia foi o seu caráter orgiástico. Ninguém sabe afirmar ao certo o início da associação sangue e sexo. Alguns relatos remontam ao antigo Egito, outros a Europa Oriental. Para os satanistas, a liberação das energias sexuais os sintonizava com as forças sobrenaturais. Logo, foram buscar o afrodisíaco mais potente - e desde os antigos egípcios, todo mundo sabe, é o sangue.

Consta-se que apenas um casal se arrependeu de cumprir o sacrifício e traiu os seguidores do Bode. O casal teve uma vida longa, muitos filhos, e cada um deles nasceu morto ou deformado. Além disso, a miséria os perseguiu até o último suspiro. Ninguém sabe ao certo se isso aconteceu ou se é apenas uma lenda para manter os fiéis.

Eva: Ah, finalmente chegamos... Você está preparado?

Na entrada do sítio, Esfinge, o porteiro, abriu as portas. Era uma fria noite de agosto. Ao fundo, os latidos dos dobermanns. Assim que saíram do carro, foram conduzidos para dentro do casarão. Seguiram por um longo corredor iluminado por velas vermelhas. Ao chegarem a uma bifurcação, Orlando foi levado para um cômodo à direita; Eva para outro à esquerda. A menina foi levada a outro cômodo. Embora tenha evitado encará-la durante toda a viagem, nesse momento final, Eva olhou para a inocente e pode sentir o medo nos olhos dela.

Quando voltou a vê-la, a menina estava no altar no centro do salão principal, deitada sobre uma mesa de madeira, amarrada pelas mãos e os pés. Eva estava ao seu lado, mas desviou o olhar para o lado, onde estava o sumo-sacerdote, o Maestro; ao lado dele, o Astrólogo. Abaixo do altar, estava Orlando, vestindo a túnica vermelha cerimonial. Atrás dele, formando um círculo, todos os membros da Ordem.

Aos primeiros sons da voz grave do Maestro, a menina começou a gritar. Um grito agudo, alto e dilacerado. O sacerdote seguia com o ritual, a mão direita segurava punhal. Os seguidores entoavam o cântico sinistro. Orlando imóvel com a cabeça abaixada, a túnica cobrindo seus olhos. A menina gritava e se debatia. Uma crescente angústia possuía o coração de Eva. Seus sentidos pareciam se despedaçar entre os ritos do Maestro e a dor na voz da menina. Por fim, vencida pelo arrependimento, ela olhou para os olhos desesperados da inocente. Nesse instante, viu um clarão, seguindo de um estrondoso barulho. Fechou os olhos.

O punhal que o Maestro segurava ainda girava no chão, quando Eva olhou para baixo e viu seu corpo caído, com o sangue escorrendo através de um buraco no meio da testa. À sua volta, todos espantados e imóveis. Então, entre os seguidores, próximo ao altar, viu um braço apontando uma arma e, com a outra mão, o autor do disparo retirando o capuz da túnica.

Elias: Tira ela daí... Vamos embora, agora!

Instintivamente, todos os seguidores deram um passo para trás, menos Orlando, parado sobre o círculo desenhado aos seus pés. Levantou a cabeça, afastou o capuz dos olhos e viu sua esposa agarrado a menina assustada pelos braços. Elias se movimentava mantendo todos sob a mira da pistola. Como poderia ter passado por Esfinge e seus cães, depois do veto a sua presença? Quem poderia ter permitido a sua entrada? Seu sogro levantou o capuz e encarou o genro e o sobrinho. Eva e a menina se escondiam atrás de Elias: “Vamos embora. Segue em frente”. Do lado de fora do salão, Ana os esperava dentro do carro, o motor ligado, os cães mordendo os pneus. Com todos sob sua mira, Elias foi se afastando até empurrá-las para interior do automóvel e atravessar o portão.

No salão, Orlando permanecia imóvel diante do altar. O astrólogo apoiava, entre seus joelhos, a cabeça baleada do Maestro. Os cães uivavam. Ao redor ouvia o burburinho dos seguidores atônitos. Então, entre eles, ouviu esta voz:

Diana: Vamos recomeçar... E celebrar um matrimônio... E a promessa de bebermos um sangue puro... Nascido da união... Como exige a tradição.
Astrólogo: O quê?

Diana caminhou até Orlando, o tomou pelo braço, como uma noiva. “O que ela está fazendo aqui? Como poderia conhecer alguns fundamentos básicos da Ordem?”. Orlando olhou para seu sogro. Este também surpreso. Nem imaginou que, em seus encontros furtivos, seus delírios de prazer, sua sensação de poder ao foder a amante do genro, revelou o dia da cerimônia. Diana seguiu. Como Esfinge a deixou a entrar? Ora, ela cobrou velhos favores.

O astrólogo, ao vê-la, agiu como se estivesse diante de uma revelação:

Astrólogo: É isso... O Maestro estava certo, uma nova harmonia surgirá do improviso... As estrelas não estavam alinhadas para um sacrifício...

Ignorando as palavras do Astrólogo, Orlando segurou forte o braço de Diana, sentia uma forte vontade de espancá-la. Mulher teimosa e idiota. Então, para sua surpresa e confusão, ela disse:

Diana: Nós temos um filho... Legítimo!

Em um instante sua memória voltou meses atrás (cap. X), até o momento que a reencontrou no jardim de sua casa, quando havia...

Orlando: Aquele bebê... Você disse que era filho da empregada...
Diana: Também disse que muitas coisas aconteciam na vida de uma mulher em nove meses... É nosso filho.

Os seguidores ouviam em suspenso. Os cães emudeceram. O astrólogo os uniu pelo braço...

Astrólogo: As estrelas estão alinhadas para um matrimônio... Um novo começo.

Ajoelhou-se, com o dedo indicador tocou no sangue ainda quente do morto, depois se levantou e caminhou até Diana, e com o sangue desenhou na fronte da noiva o sinal invertido da cruz.

Quando o astrólogo se preparava para marcar sua testa, Orlando o segurou pela mão.

Orlando: Não preciso mais disso!

Olhou para a expressão abestalhada de Diana, borrou a marca em sua testa e disse:

Orlando: Sai daqui agora!... Eu vou para o deserto, refletir sobre tudo isso. Quando voltar, quero te encontrar em casa... Vá agora!

Astrólogo: Não poderão partir... Uma vez dentro do círculo, já pertencem ao círculo.

Todos os membros da Ordem se fecharam ao redor deles. A porta por onde Elias levara Eva e a menina ainda estava escancarada. Orlando saltou rápido para o altar, pegou o punhal no chão, segurou Diana pelos braços, e tomado por uma poderosa vontade, olhar inflamado, desafiou:

Orlando: Todos vocês são covardes e fracos. O bode irá mijar sobre o sangue que irei derramar!
Diana: Está louco!?!

Do alto do altar, o Astrólogo encarou os seguidores, esperando o avanço sobre o insolente, mas os fiéis esperavam o mesmo dele, por isso se lançou sobre o pescoço de Orlando, que o jogou ao chão e, em um segundo, furou sua costela esquerda. Como um animal selvagem, voltou-se contra os outros, o sangue escorrendo pelo punhal. Assustados, abriram o círculo. Nesse instante, o Senador puxou Alexander C. Shelley para os fundos, já na tentativa de fugir. Os outros membros confiaram na fúria dos dobermanns, que esperavam o casal do lado de fora de salão.

Diana: Meu Deus! Nós não conseguiremos fugir.

O carro de Diana estava escondido do lado de fora da porteira. Porém, para chegar até lá precisaria atravessar a matilha de cães latindo furiosamente diante deles. Os animais obedeciam a Esfinge, obediente ao comando de qualquer membro da Ordem. E os velhos favores já haviam sido pagos.

Membros: Os cães!

Então, o fato inexplicável aconteceu. Segurando a mulher pelo braço, Orlando atravessou a matilha, sem nenhum cão os atacar, pelo contrário, se dispersaram ao redor do casarão, babando e rugindo, esperando atacar quem ousasse sair. O mestre perdera o comando. Quando Orlando passou por Esfinge, o encarou na expectativa de que, sendo o último, tentasse impedi-lo. Sem reagir, mas sem se intimidar, o porteiro lhe disse: “Você está possuído pelo Bode. Agora, todos os caminhos estão abertos”.

Diana abriu a porta do carro.

Diana: Venha comigo... Está acabado.

Orlando olhou para o lado esquerdo da estrada. Ao longe, viu brilhando luzes vermelhas, azuis e brancas. “Que ironia”. Pensou na esposa. Nem ele nem ela foram o lorde e lady Macbeth, mas a vida ainda é um conto cheio de som e fúria sem nenhum significado.

Orlando: A polícia está chegando... Vá agora!
Diana: E nós...
Orlando: Já lhe disse! Vou para o deserto... Quando voltar...
Diana: Por que...
Orlando: Porra, você é muito teimosa! Olhe lá... Vê aquelas luzes, a polícia... Daqui a vinte minutos estarão aqui... E eu não vou com você.

Voltou o olhar para o casarão. Os membros da Ordem se encontravam acossados pelos cães. Percebendo a situação, Esfinge entrou em pânico. Diana gritou para ele: “Vem comigo!”. Ela acelerou.

Orlando se embrenhou no meio da mata. Pretendia seguir a pé através dos morros ligando uma região a outra. Ainda na parte plana, tirou a túnica, as roupas de baixo, até ficar nu. Uma fria noite de agosto. Lua cheia. Um intenso calor dominava seu corpo. Uma poderosa certeza guiava seus passos. Finalmente livre. Os idiotas da Ordem ignoram esse poder, para se contentar com o orgulho do dinheiro e o prazer da carne. Em troca, as divindades exigem a única parte que lhes cabe nesse latifúndio: a devoção. "É muito pouco!"

Ao alcançar o alto do morro, olhou para trás: inúmeras viaturas cercavam a fazenda. Os cães alucinados corriam pela estrada. Seguiu em frente. Caminhava em direção ao deserto, para construir um templo provisório de solidão e silêncio, porque agora tudo é possível. Mas antes, precisaria de novas roupas.

Fim

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Malditos - Cap. XXIII

Alguma coisa está fora da ordem


Os últimos dias foram tensos.

Orlando se aprofundou nos fundamentos sobre a Ordem, em especial os estatutos. Em determinado momento, precisou de um professor de aramaico. Para seu espanto, o mestre indicado fora seu antigo professor de direito romano. Somente uma vez interrompeu seus estudos, quando a médica-chefe do Asilo Michel Foucault ligou.

Médica: Sua mãe quer falar com você.

Desligou o telefone. Eva estava ao seu lado, no sofá, muito curiosa sobre a breve conversa telefônica.

Eva: O que aconteceu?

Nada respondeu. Andou alguns passos perdidos pela sala, até iniciar titubeante a seguinte confissão:

Orlando: Seguindo os princípios da Ordem, não deve haver segredos entre nós.
Eva: Assim exige os mandamentos.

Pela Ordem, nenhum casal deve se consagrar sem antes se confessar um para o outro. Nenhum casal receberá a dádiva sem verdade.
Após o bang-bang sem mortos na casa do primo, Eva se revelou. Ela imaginou uma reação violenta do marido, afinal, não poderia lhe dar filhos. Ele apenas disse: “Isso não importa mais”. Por que não? Tinha outra mulher, Diana, que poderia lhe dar tudo, menos o que mais queria. Eva sabia.

Ao contrário de sua mãe, avó e bisavó, mulheres submissas, ela havia escolhido o homem com quem se consagraria. Foi por isso que a esterilizaram? Tantas questões. E ele ainda não disse nada.

Orlando: Eu menti para você... Minha mãe está viva... E não bate muito bem das idéias.

Eva engasgou. O que isso significava?

Eva: O meu pai já sabe?

Pensava: "em o que mais os dois são cúmplices, afinal, já dividem a filha e a amante".
Eva: Você me disse que seus pais estavam mortos.

Para alguém como Orlando ser admitido na Ordem, precisa ser filho único e órfão de pai e mãe.

Eva: Desde que nos conhecemos, há mais de nove anos, disse que seu pai e sua mãe estavam mortos! Eu lutei para que a minha família te aceitasse... Sabe por quê?
Orlando: Para não criar vínculos familiares fora da Ordem...
Eva: Você tem algum irmão?

Estava transtornada. Seu primo tinha toda a razão. Orlando era um mentiroso. Ela, uma tola. “Uma Lady Macbeth falida!”.

Eva: Você passou os últimos meses estudando os fundamentos da Ordem....
Orlando: Por que ficou tão nervosa?
Eva: Por quê? Porra, até ontem, seus pais estavam mortos!
Orlando: Minha mãe estava desaparecida há vinte anos. Em termos legais, tanto poderia estar viva quanto morta. Eu contratei um detetive para encontrá-la... Em um hospício. Pedro Cigano está tratando dela agora...
Eva: Aquele bruxo!
Orlando: Ocultista.
Eva: E meu pai sabe?
Orlando: Nos já conversamos. Encaminhei um ofício para os membros decanos examinarem, está tudo nas mãos deles, têm dois dias para decidir se aceitam um estrangeiro como eu. Agora, preciso ver a minha mãe.
Ainda tonta com a revelação, Eva se levantou e segurou o braço do marido.
Eva: Por favor, não vá!

Ele se libertou.

Orlando: Eu tenho que ir.

Acelerou para o manicômio. Ao chegar lá, foi recebido na porta por Pedro Cigano: “Ela lembrou o seu nome”. Rapidamente foi conduzido até a presença da mãe. Sentou-se ao seu lado e a pegou pelas mãos. Ela olhou para ele e disse:

Mãe: Orlando, meu filho... Você conhece?... Orlando, meu filho.... Você conhece?

Ele a abraçou e sussurrou:

Orlando: Sim, eu o conheço... Posso garantir, o conheço melhor do que a senhora.

Depois correu suas mãos pelos seus cabelos até o pescoço. Nesse momento, um pensamento mórbido passou pela sua cabeça. Poderia estrangulá-la. Não haveria mais nenhum impedimento para a realização da cerimônia.

Orlando: Minha mãe... Eu poderia te estrangular... Mas não sou assim, um personagem tão vulgar... Sou seu filho.

Após se despedir, conversou a sós com Pedro Cigano.

Orlando: Posso considerar isso um quadro de evolução?
Pedro Cigano: A evolução é lenta... Agora, nós podemos conversar sobre o impasse envolvendo a cerimônia.

No caminho de volta, no banco do carona, Pedro Cigano debateu a questão sob diversos ângulos. Para ele, os altos membros aceitarão o pedido de admissão, mesmo sob o não cumprimento total de um dos artigos da doutrina. Enfim, agiriam assim de qualquer forma, pois a própria origem de Orlando já é uma subtração à Ordem.

Pedro Cigano: Você significa transformação, meu caro... Toda a renovação vem de fora... E não há mudança sem superação de velhos preceitos. A ordem sempre nasceu do caos.

Orlando pensou consigo: “A ordem é uma bagunça.”

Infelizmente, Orlando perdeu a reunião que os altos membros decidiram o seu destino. A principal testemunha a seu favor foi a primeira a depor – o próprio Pedro Cigano. Dissera que a mãe de Orlando vivia em estado catatônico, ou seja, “era uma morta em vida”. Imediatamente o Senador decretou o veredicto: “Morta em vida, morta no além, dá no mesmo... A lei precisa ser mais flexível... O rapaz foi honesto... Que a cerimônia se realize”. O Senador soltou o grito e todos o seguiram, mas sem a mesma alegria infantil, porque acima de todos, ele simplesmente adora a festa de consagração... que só acontece de sete em sete anos.

Somente um não comemorou entusiasticamente, Alexander C. Shelley, o sogro de Orlando.

Shelley: Há outra questão que precisamos votar. Orlando apelou para o direito de excluir um antigo membro da cerimônia.

Todos gelaram. Silêncio tumular. Por que ele não havia dito isso antes de votarem? Muitos pensaram: “Calculista”.

Senador: Quem?
Shelley: O meu sobrinho, Elias.

Todos respiraram aliviados, a excitação voltara como um tsunami. Trocaram rápidas palavras entre si: “Não é tão importante”. “Não esteve presente na última cerimônia”. “È depressivo”.

Shelley preocupado coçava a testa. Ninguém mencionou a relação de Elias com a sobrinha do inspetor. Mas, no fundo do peito, sentia a exclusão de um membro de sua família, mesmo que fosse substituído por outro, era o seu sobrinho, sangue do seu sangue.

Nos últimos dias, Elias se fechou paranóico em casa. Ele vasculhou cada centímetro em busca de outras escutas. A princípio, o empregado quis ajudar, mas tão logo percebeu a gravidade do estado mental do patrão, tentou dissuadi-lo, sugerindo uma viagem. A negativa do patrão foi ameaçadora. Então, resignou-se a vê-lo desmontar os móveis e os aparelhos elétricos, a quebrar as paredes. A casa inteira estava destruída, era impossível anda sem pisar em um pedaço de reboco, lascas de madeiras, ou tropeçar em fios. A situação no banheiro social era particularmente precária, dois canos furados jorravam água até a cozinha.

Enquanto consertava o vazamento, o mordomo lamentava quieto o estado desolado do patrão: sentado na varada, um copo de uísque na mão e uma arma na outra.

Há duas horas se encontrava nessa posição. Desde que recebera uma correspondência, um envelope branco com o lacre da Ordem. Enquanto limpava a casa, vez por outra, o mordomo dava uma olhadinha no patrão. Elias lia e relia o documento, um simples ofício de uma página. Finalmente, levantou. O mordomo pode ouvi-lo: “Agora basta!”. Ele entrou no seu quarto, levando a garrafa, a carta e arma, trancou-se.

Duas vezes bateu na porta, perguntando se precisava de alguma coisa. Não ouviu resposta. Após três horas, o empregado pegou o telefone e ligou para a jovem Ana. Ela foi imediatamente para lá. Assim que o mordomo lhe abriu a porta, tomou um susto.

Ana: Parece que um furacão passou por aqui.

O mordomo mal pode explicar toda a situação quando ouviram um som vindo do quarto.

BANG!

Ana: Naaãooo!!!

Em pânico, o mordomo arrombou a porta e encontrou seu patrão deitado no chão. Sua mão esquerda sangrava, havia um buraco à bala no meio dela. Ao vê-los, Elias lançou um olhar insano e perdido. Com a voz trêmula, dizia: “que a cerimônia se realize”. E riu histericamente.


(a seguir: this is the end, my only friend, the end)

sábado, 19 de junho de 2010

malditos - Cap. XXII

Gérard de Nerval


Ao longe, a música: tambores rufando, mãos ancestrais, o movimento dos astros, o vento atravessando as areias. Algum poeta jurou ouvir o bater de asas, anjos ou demônios, mas estava delirando, pois este não é o reino do deleite, este é o reino da Ordem. E aqui, o que é selado...

Eva: Não pode ser negado.

Pactos não podem ser quebrados.

Elias: O pacto é um contrato... Nada mais do que isso. È um contrato social, de ordem comercial. Por exemplo: um fazendeiro roga à divindade, pedindo a multiplicação dos seus gados, para isso oferece em sacrifício um boi da sua minguada criação, e o que recebe em troca? Uma boiada.
Eva: Por favor, não me venha com suas novas idéias marxistas!
Elias: Você não percebe? Nós negociamos com as divindades, digamos, nós dançamos para elas, mas no final das contas, não as usamos para atingir nossos objetivos humanos. Um boi para uma boiada. Isso não é Marx.
Eva: Eu sei!
Elias: Livre arbítrio, minha prima.
Eva: Já se perguntou por que tem o nome de um profeta?
Elias: O quê?
Eva: Será que suas idéias avançadas o deixaram surdo?
Elias: Não! Nunca me perguntei. Isso nunca foi uma questão para mim.
Eva: Logo você, tão esclarecido, ignora a primeira lei de Sócrates. Se nunca se questionou sobre a origem do seu nome, também nunca questionou sobre quem é você, logo jamais há de aceitar sua vida como é.

Eva se escondeu na casa do primo. Chegara aflita e desesperada. Elias a abraçou com o carinho de um irmão protetor. À noite, os dois conversaram longamente, passaram a vida a limpo, se perguntaram assustados: será que estavam pagando alto demais por velhos contratos? A vida cobrando mais do que o devido?

Como ela o havia procurado antes do pai e, principalmente, do marido, Elias acordou confiante e disposto a trazê-la definitivamente para o seu lado. Antes dela acordar, ele já a esperava com o café da manhã pronto sobre a mesa. Iria convencê-la a desistir da Cerimônia de consagração. E usaria todas as artimanhas para isso.

Elias: Nossa conversa ontem à noite, nossas lágrimas, valeram para alguma coisa?
Eva: Estava nervosa... Foi um desabafo.
Elias: Você não irá conseguir. Está cheia de culpa. Nós dois estamos cheios de culpa. Foi para isso todo o nosso sacrifício, para vivermos com culpa?
Eva: Não me tome pelos seus atos. Você se afastou demais dos valores da nossa família. Está perdido.

Elias levantou, foi até o bar, uísque sem gelo, voltou batendo o copo sobre a mesa.
Elias: Eu não quero para você o que eu tenho. Uma vida de sofrimento. E ontem você sentiu uma pontinha do espeto, e me procurou chorando, com medo.

Antes que Eva respondesse, uma voz familiar surgiu do fundo da cozinha: “Você deveria ler mais a Bíblia, Elias”. Ao reconhecê-la, o anfitrião engoliu o uísque, e rosnando:

Elias: O que veio fazer aqui?
Orlando: Vim buscar a minha mulher.

Orlando atravessou a cozinha, levantou Eva da cadeira, e cochichou.

Orlando: Vamos embora, chega dessa palhaçada.

Eva olhou para o marido com um misto de prazer e temor. Elias percebeu, por isso, quando ela lhe dirigiu o olhar:

Elias: Prima, por favor, fique aqui... Não se submeta...

Orlando mal conseguiu ouvir:

Orlando: Você é um fraco! Um traidor!

Eva o empurrou:

Eva: Não diga isso! Você não tem...

A raiva o cegou. Nem ouvia o que Eva dizia, em sua mente só havia uma coisa: a lembrança de dois meses atrás, em sua casa, quando ela dissera: “Você tem inveja do meu primo”. Isso era demais! Julgá-lo tão mesquinho e inferior.

Orlando: Seu primo traiu a sua família. Tem um carro da polícia parado vinte e quatro horas debaixo da sua cobertura...
Elias: Você é um mentiroso.

Ambos se olharam com raiva. Foi um longo instante de tensão. Eva tremia, mas ao mesmo tempo - por favor, me explique -, sentia um frio de excitação correndo pela espinha. Os dois pareciam velhos pistoleiros do oeste: olhares silenciosos, músculos tensos, a cabeça confusa.

Orlando: Tenho certeza que tem uma escuta aqui!

E Orlando começou a quebrar coisas, arrancar gavetas, virar mesas. Eva gritava. Nervoso, Elias correu até a escrivaninha na sala contígua, abriu a gaveta e pegou a beretta. Conferiu o pente cheio. Voltou à cozinha, encontrou Orlando prestes a quebrar mais um vaso valioso. Mirou na testa. O vaso estalou no chão. Elias desviou os olhos da mira para os cacos.

Orlando: Está vendo? Sabe o que é esse brinquedinho aqui na minha mão? Uma escuta. Você já deve ter cantado todo o seu repertório.

Uma corrente elétrica correu pela espinha de Elias até estraçalhar sua mente. A vontade de estourar a cabeça do filho-da-puta não era suficiente para animar seus músculos paralisados. Ele precisou segurar o minúsculo microfone para acreditar. Girou várias vezes a peça entre os dedos. A cada volta imaginava quem poderia tê-lo instalado. Mas ter sido iludido por alguém de confiança ainda doía menos. Batia fundo em seu peito o fato de Orlando revelá-lo, aos olhos de sua prima, como um idiota. Ele não ouviu o assistente do inspetor, do outro lado da rua: “Putz, fudeu!”

Orlando: Há bastante tempo, seu pai tem sendo investigado pela polícia federal...
Eva: Por quê?
Orlando: Política.
Eva: Meu primo não é um traidor! Eu vi a expressão dele. Não sabia dessa escuta. Mas você sabia...

Apertou forte o braço da esposa.

Orlando: Seu primo está namorando a sobrinha do Inspetor-chefe encarregado pela investigação. Ele te disse?
Eva: Não.
Orlando: Ele mudou de lado. Vocês conversaram a noite inteira, ainda resta dúvida? Ou os afetos familiares atrapalham sua percepção?

Eva lançou o olhar, sobre os ombros do marido, até seu primo. Ele a encarou com lágrimas secas no rosto, ombros caídos, uma arma inerte na mão. Ainda tentou suplicar: “fique!”.

Eva: Vamos embora.

Ela se adiantou até a saída. Orlando, ao passar por Elias, soprou suas palavras finais:

Orlando: Aproveite a arma e ponha um fim ao seu sofrimento.


(a seguir: a cerimônia começa)

domingo, 30 de maio de 2010

Malditos - Cap. XXI

Pele de Asno às avessas

Depois aturar as explicações do ginecologista, seus termos técnicos e o olhar comiserador, Eva exigiu uma resposta definitiva.

O médico fechou a pasta. Entre o agendamento e a consulta, ela demorou nove meses para aparecer no consultório. Já não sabia se estava diante de uma neurótica compulsiva ou de uma maníaca depressiva. Quem o indicou? Provavelmente algum inimigo oculto.

Dr. Gianne: A maternidade não se resume ao parto...
Eva: Só me responda sim ou não: tenho condições de engravidar?
Dr. Gianne: A maternidade é um estado de espírito, independe das condições fisiológicas...

Eva o interrompeu com um soco sobre a mesa. “Sim ou não”.

Dr. Gianne: Por favor, se acalme... Seus ovários...
Eva: Por quê?
Dr. Gianne: Você já fez uma operação de aborto?
Eva: Por quê?
Dr. Gianne: Por favor, calma! Vou ser franco, já fiz abortos, por vários motivos, até o primeiro mês de gestação, os riscos para a mulher são mínimos...
Eva: Por quê?
Dr. Gianne: Depois do sétimo mês...

Ela não queria ouvir mais nada. Saiu da sala às cegas, derrubando a secretária que tentou contê-la.

“Por quê?”

Andava perdida pelas ruas, esbarrando nas pessoas, nos mostruários dos camelôs, falando sozinha.

“Por quê?”

Queria ouvir uma resposta, nem precisava acreditar no interlocutor, por isso parou diante da Igreja de N. S. de Fátima. As portas fechadas. Ela contornou até a entrada dos fundos. Ouviu as vozes de dois homens discutindo: o padre e o seminarista. A discussão começou por causa da posição dos castiçais sobre a mesa na cerimônia da noite, um queria à esquerda, outro à direita. O bate boca já avançava para o campo pessoal quando, surpresos, se calaram diante da estranha.

Padre: Precisa de alguma ajuda?
Eva: Quero me confessar.

O padre e o pupilo se entreolharam rapidamente. Seria mais uma viciada em crise? Pelas roupas, o seminarista concluiu que não. Pela aparência desolada, o padre conclui que sim. “Pobre menina rica”.

Padre: Vamos conversar ali, no jardim...

Era jovem, talvez tivessem a mesma idade. Sentaram no banco de madeira, sob a sombra de uma mangueira.

Padre: Qual seu nome?

“Eva”. O sacerdote não conseguiu disfarçar o espanto. Rapidamente voltou ao jeito benevolente. Pegou-a pelas mãos, olhar caridoso, voz piedosa:

Padre: Parece angustiada...
Eva: É assim que recebe as visitas inesperadas?
Padre: Vejo tristeza em seu olhar...

Nesse instante, Eva voltou a si, suspirou fundo, pensou em levantar e ir para casa. Por outro lado, não havia melhor lugar para estar. Abriu a bolsa, retirou um maço de cigarros. Há nove meses o maço estava em sua bolsa, só o fumaria se chegasse a essa situação, mas já sabia desde o princípio que chegaria, por isso comprou o Marlboro. Acendeu, soprou, olhou com arrogância para o padre.

Eva: Posso lhe contar uma história sobre uma garota?
Padre: Quem ela é?
Eva: Essa garota sou eu. Essa garota morreu hoje. Foi assassinada. Na verdade, já estava morta. Mas seu fantasma vagava por aí, me aterrorizando. Estou aqui para entregar o corpo àqueles que a mataram...
Padre: Não posso ajudá-lo se não entendo o que diz.
Eva: Nunca entenderá. Mas vou lhe dar uma chance. A história começa no velório de minha mãe, quando tinha sete anos. Meu pai ficou muito triste. Ele a amava demais! Ficamos sós, mas para mim foram os melhores anos de minha vida. Eu adoro meu pai. Porém, conforme fui crescendo, ele começou a se afastar de mim. Diziam que eu parecia demais com a minha mãe. Ele viajou e me deixou com meus tios. Quis meu pai de volta. Quando voltou, eu tinha dezesseis, e o enfeiticei.
Padre: Está me dizendo que...
Eva: Sabe o que estou dizendo, ou por acaso o celibato também interferiu no seu raciocínio! Eu quis. Foi uma única vez, a primeira. Minha família não vive sob os seus dogmas. Somos o que chamam de malditos. Hereges. Muitos dos meus antepassados morreram por causa de sua intolerância. Aliás, acho que me batizaram com esse nome apenas por provocação. Mas não! Tenho esse nome para poder viver disfarçada na sociedade brutal que ajudaram a criar. Por isso, quando o fruto nasceu em meu ventre, aceitei beber todas aquelas ervas para expurgá-lo... Eu perdi meus ovários. Agora, entende?

O sacerdote a segurou firme pelo braço, como se estivesse sendo presa.

Padre: Temos de levar seu pai à justiça...

Ela se libertou e, furiosa, desferiu um nocaute no rosto do padre.

Eva: Hipócrita! Leve os seus pedófilos à justiça!

E cuspiu.

O seminarista correu para contê-la e levou um chute nas bolas.

Eva chegou à rua, parou um táxi, entrou e disse ao taxista

Eva: Vamos até ao bairro Floresta das Serras... E não me pergunte nada até lá!
Era o endereço da casa de seu primo, Elias.

(a seguir: Seu paraíso, o meu infermo).

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Malditos - Cap. XX

Mais estranho do que o Paraíso

Orlando entrou em casa como um ladrão, sem avisar, na surdina, pela porta dos fundos. Há muito tempo algo o inquietava. Porém, a sucessão dos fatos inesperados dos últimos meses havia ocupado todo seu tempo. Agora, afastado dos negócios da Ordem, podia se ocupar desta pequena dúvida, “a desconfiança típica dos maridos”: o que sua mulher faz nas tardes de quinta-feira? O leitor atento talvez não se lembre, mas no início do relato sobre os acontecimentos narrados no segundo capítulo, ele havia ligado para a casa a procura da esposa. Ela não estava. Assim como nas quintas seguintes.

Logo de manhã notou que Eva ansiosa, talvez por causa de suas férias inesperadas, por isso inventou um compromisso perto da hora do almoço. “Não almoçarei em casa e só voltarei à noite” – ele disse e quase pôde ouvir a respiração dela aliviada. Planejava flagrá-la se preparando para sair.

Circulou pelos cômodos, nenhum vestígio da mulher, apenas ouvia a voz da governanta, na varanda, contando a história de Chapeuzinho vermelho para a menina. A velha escolheu a versão de Charles Perrault, mais assustadora. Ao final, a criança lhe perguntou: “Por que o lobo comeu a Chapeuzinho?”. Com uma voz terna respondeu: “Porque essa era a natureza do lobo”. Ao se aproximar delas, se assustaram, a menina correu para os braços da governanta, que olhou intrigada para o patrão.

Orlando: Onde Eva está?
Governanta: Ela saiu.

Essa resposta tão natural foi dita com um sorriso oculto nos lábios. Ela não tinha o menor respeito por ele. “Por qual razão?” – Orlando elucubrava consigo mesmo – “Será por causa de minha origem modesta, aliás, como a dela? Velha idiota. Incrível como os empregados, com o tempo, assumem a mesma arrogância dos seus patrões. Deixe estar, em breve, não precisarei mais aturar a sua presença”.

É difícil saber se a governanta captou os pensamentos de Orlando, seja como for, ela tomou a menina pelas mãos.

Governanta: Vem, meu anjinho, vamos brincar na piscina... Você quer?

A menina correu alegre pela grama, o sol brilhava sobre seus cabelos loiros encaracolados, e a olhando assim, sob a luz do dia, ela bem parecia a figura daqueles anjos renascentistas de Rafael.

Orlando pegou o celular e discou para a esposa. Esse número se encontra desligado ou fora da área de cobertura.

Taciturno, voltou ao interior da casa, passou pelo bar montado na sala de estar, sentiu vontade de abrir uma garrafa de uísque, acender um cigarro... Mas não! O seu corpo deve estar limpo até a realização da cerimônia, daqui a poucas semanas. Entrou na biblioteca, retirou da estante o Paginarium fulvarum, deveria estudar mais sobre os fundamentos da Ordem.

Quando já se encontrava absorto na leitura, seu celular tocou: um número desconhecido no visor.

Orlando: Alô?

Era Parafuso. Falava mastigando as palavras. Queria vê-lo urgentemente. Anotou o endereço, uma vila distante. “Que esperto” – pensou – “Ninguém imaginaria que poderia estar escondido ali”. Talvez tenha sido levado pela vontade de conversar com um amigo, ou mera necessidade de sair de casa, pois imediatamente fechou o livro, pegou a chave do carro e partiu.

Ao chegar ao local indicado, Orlando quase não acreditou no que viu, a ponto de conferir três vezes o endereço escrito no papel. Era uma casa muito humilde, com uma cerca gasta de arame farpado, Parafuso estava levando a sério demais o seu disfarce. Como não havia campainha ou qualquer coisa do tipo, bateu palmas na esperança de um equívoco. A figura que surgiu na porta lhe gelou a alma.

Era o velho amigo Leandro e, ao mesmo tempo, não era mais. Estava em uma cadeira de rodas. Com a voz trêmula, perguntou:

Orlando: O que aconteceu?
Parafuso: Entre...

Fazia exatamente três meses desde o acidente. Parafuso não foi muito preciso nos detalhes, contou que havia acordado em um hospital.

Parafuso: Fui salvo por um casal de idosos. Eles vinham na minha contramão, quase bati no carro deles... Pararam, desceram pelo barranco em que capotei e me encontraram inconsciente. Eles poderiam ter pego a bolsa com o dinheiro e me deixado lá... Por que não? Quase os matei. Chamaram o socorro e... A bolsa está aqui, intocada. Essa é a casa deles. Quero ajudar a reformar, não aceitam... Você está surpreso?
Orlando: Eu... Eu... Não sei... Sinto muito.
Parafuso: Por quê?
Orlando: Se não tivesse te envolvido...
Parafuso: Confesso que pensei muito sobre isso... Em alguns momentos, desejei o inferno para você... Mas esse casal tem me ensinado muito sobre a vida. Eles me acolheram. Não aceitam nada além de minha gratidão. “Não é com dinheiro que irá nos recompensar” – me dizem... Mas há aí um pouco de teimosia. Não saio daqui enquanto não aceitarem minha ajuda para melhorar a casa... Tem uma linda horta lá nos fundos, um galinheiro meio caído e um chiqueiro pior ainda... Enfim, eles comem o que plantam, têm ovos, carne... Você fala tanto sobre liberdade, autonomia, não ser empregado de ninguém... Então, será que não têm o que tanto procura? Foi por isso que te chamei. Meus filhos estão aqui, e minha mulher também... Quanto tempo perdido buscando isso? Mas já sei o que está pensando, te conheço, devo ser algo mais ou mais menos assim: “Só há solidariedade na tragédia” ou “todos têm pena de um aleijado” ou “agora ele vai abrir a Bíblia e ler algum versículo para mim”... Eu te chamei aqui para dizer que não tem nenhuma responsabilidade sobre o que aconteceu comigo. E também para olhar pela última vez nos seus olhos, porque gosto de você, e acho que nós dois precisamos de um abraço... Não sei com o que está metido ou quem, mas desconfio que a liberdade que tanto deseja não está onde procura...
Orlando: E nem aqui!
Parafuso: Não seja arrogante.
Orlando: Preferia que tivesse aberto a Bíblia e lido algum versículo. Foi pela nossa amizade que te pedi para sair da cidade. E esse foi o abraço mais forte que lhe dei. Fico feliz que seus filhos estejam aqui com você, mas fico triste que tenha me chamado para me dar um sermão sobre “o valor das coisas simples da vida” e, do alto de um lugar superior, tenha aproveitado a ocasião para romper a nossa amizade.
Parafuso: Não confunda as coisas...
Orlando: Bem, então, como posso entender “o olhar pela última vez nos meus olhos”?
Parafuso: Por que não sairá vivo dessa situação.

Os dois se olharam profundamente, muita coisa passou – carinho, mágoa, cumplicidade, desconfiança – e se dissipou rapidamente.

Parafuso: Acho que não irá querer conhecer a horta.
Orlando: Acho que não irá me negar o último abraço.

Despediram-se em silêncio. Tão logo se encontram a sós – Parafuso olhando para a horta e as formigas comendo várias folhas de verduras; Orlando dirigindo de volta para casa, ofuscado por faróis – um peso enorme se abateu sobre a consciência de ambos, questões e respostas contraditórias.

Enquanto ocorria esse encontro, em outro lugar, Eva vivia seu dilema particular, ou seja, a resposta à pergunta de seu marido: “o que ela faz nas tardes de quinta?”. Há meses e meses, desde o início de nossa história, secretamente, ela se dirige a um determinado lugar, porém nunca consegue atravessar o portão. Houve vezes em que ficou horas diante da entrada até desistir. Contudo, no que parece ser um dia diferente, hoje ela resolveu entrar, deixando para trás a placa prateada chumbada no muro, onde se lê: Dr. Gianne Casanova, ginecologista.
(a seguir: Qualquer um perdoa, menos Deus).


sábado, 3 de abril de 2010

Malditos - Cap. XIX

Motivo condutor

Os ventos da revolta voltam a soprar, arrombando as portas de nossa percepção, despertando os bondosos do seu sono, tornando real o pesadelo dos maus.

No teatro lotado, o Maestro retira sua guitarra do estojo, a voz sinuosa volta a cantar, o sibilo de uma cascavel, nos lembrando como tudo começou e como tudo vai terminar.

A primeira canção é sobre um homem ambicioso chamado Orlando e a encruzilhada na qual se encontra. Ele entregou sua devoção a uma mulher e seu desejo a outra. Ah, essa parte é tão comum! Até os versos seguintes sobre o profundo desprezo da personagem pela ordem social, pelas classes, sua busca primordial por poder, que o levou a assinar um contrato, para não ser nem escravo e nem senhor, para além do bem e do mal, apenas um homem livre, forçando os limites de sua vontade, elegendo o misterioso e temperamental Destino como oponente.

Ó suave e malicioso menestrel, cante uma balada de amor, aquela sobre as duas mulheres, Eva e Diana, a senhora e a princesa. Quem orienta a vontade feminina? A serpente ou a vingança? Porque, segundo a canção, uma sente o ambíguo desejo de romper com sua tradição e, ao mesmo tempo, teme a punição de sua própria tradição. A outra deseja ferir o seu amante, uma reação ao desprezo pelo seu amor, mas a cada ferida no corpo do amado é o seu coração que sangra.

Depois dessa bossa, vem o blues sobre o amaldiçoado, Elias – o belo, profeta da tristeza. Talvez se Helena fosse feia, não haveria a Ilíada. Essa é uma canção sobre outro menestrel, que aprendeu a tocar com o próprio Maestro. Ele encontrou o verdadeiro amor, a cara-metade como dizem por aí. Provando ser fora do comum, alcançou também o sucesso, pois os homens ordinários têm uma coisa ou outra. Como os antigos heróis gregos, a Glória foi sua madrinha. Porém, Elias não tinha em seu sangue o gene de um Ulisses, mas sim o de um Orfeu, por isso enterrou sua esposa suicida meses depois dela dar a luz à sua única filha, a qual não consegue olhar, porque cada traço lhe lembra o rosto falecido. Sufocado pelo peso do luto, vive entregue à crença nos seus mitos, na esperança que sua mulher possa renascer nos olhos da jovem profetisa Ana. Tudo é engano ou descoberta. Ana pretende levá-lo para outro caminho, sem misticismos, mas o peso da tradição dele o imobiliza. Ao invés da paz que anseia, o novo só lhe promete incertezas.

O maestro aumenta o volume da guitarra, vamos ouvir uma canção política. O Senador, do topo de sua cobertura, vomita enojado o licor doce da democracia. O seu braço direito, menino prodígio, Alexander C. Shelley bebe devagar, dizendo que é preciso mudar para manter tudo igual. È uma velha máxima. Ao redor deles, ovelhas furiosas: prefeitos, empresários e empreiteiros querem lucrar, dinheiro sujo e imagem limpa. Todos reunidos ao redor da mesa de negócios. Na mira, uma mina de urânio escondida sob os pés de pescadores, que acreditam serem os peixes sua única riqueza. Como seria fácil deixá-los pescar, mas sempre aparece um ambientalista para perturbar, um tipo que atira ali e acerta em outro lugar, sabe falar e sorrir para os fotógrafos. Um sujeito assim é difícil encarar, porém, disse Orlando, em uma sociedade democrática, todos devem esconder seus vícios, e nosso idealista tinha os seus. Nessa sociedade, o mais importante é a aparência, concluiu Orlando, sem discordâncias. Logo, bastava criar uma situação para o ambientalista com sua cocaína aparecer e o jornalista fotografar. Quem segue os passos de santo com pés de barro? Mas quando se luta contra o Destino, nada sai como o previsto, não é mesmo?

“Agora Maestro, por favor, desligue a guitarra! Deixe-me entender, que trama louca! O ambientalista morreu, os pescadores clamam por justiça, a polícia suspeita de crime premeditado, e ainda por cima existe essa tal Ordem, tipo uma seita secreta. No resumo estava escrito novela de horror... Tirando algumas passagens, como a do cemitério, ou Orlando encontrando sua mãe louca... É uma narrativa policial? Claro que não!”

E no silêncio do auditório, alguns ouvintes levantando, outros permanecendo, por puro respeito ao compositor, as cortinas se fecham. Devo ir embora? Muitos saem do teatro reclamando. Aqueles que ficam vêem o Mestre de Cerimônias se aproximar do microfone, em dúvida se ele vai explicar ou seguir com o espetáculo: “a parte XI ao XVIII, foi um improviso, para o baterista e o baixista solarem, agora retornaremos ao nosso leitmotiv”.

As cortinas se abrem novamente. O menestrel volta a ligar sua guitarra, o pé esquerdo sobre o pedal de distorção.

A primeira música é um rock’n roll sobre um cara comum chamado Parafuso. É uma história sobre amizade e desconfiança, lealdade e menosprezo, sobre uma mulher, sobre esta certeza: em uma situação perigo, é melhor salvar a própria pele. Esse enredo começa no exato momento em que Parafuso, fugindo de todas as conseqüências descritas acima, capotou com seu carro, açoitado por visões fantasmagóricas, cegado por uma luz intensa e, quase surdo, uma voz estrangeira recita estas palavras: “A morte perderá o seu domínio. Nus, os homens mortos irão confundir-se, com o homem no vento e a lua do poente; quando, descarnados e limpos, desaparecem os ossos, e nos seus pés e braços brilharem as estrelas”.


(na próxima semana: enterrado vivo em uma terra estrangeira).